terça-feira, 11 de novembro de 2008

UMA ENTREVISTA

Salve amigos e amigas, nessa edição especial do fanzine do mês da Consciência Negra trazemos uma entrevista com Erivelto Martins da Silva. Ele que nasceu em Serra Talhada, Pernambuco, no ano de 1955 veio com os pais para o Paraná ainda criança. Violeiro, amante do Cordel, nos concedeu essa entrevista numa tarde de sábado de muito sol em sua humilde casa na Vila C. A seguir, a entrevista com esse irmão que já passou várias dificuldades na vida, mas sempre diz que a pior pobreza é a falta de cultura.



Z - Vamos começar pela sua infância.

Erivelto - Foi uma infância muito árdua, viu. Serra Talhada é uma cidade cravada num sertão de muita seca, ás vezes dois anos, três anos sem chuva. O meu pai, depois de uma longa luta, batalhando pra arrumar comida chegou a conclusão que não tinha jeito. Mas também não tinha como ele fugir da seca. E por coincidência as duas coisas que ele tinha era uma espingarda de carregar pela boca, uma rede, minha mãe e eu. Porque nem mesmo rapadura, farinha que era a base de alimentação do nordestino já não existia mais. E é interessante que meu pai com essa espingarda saiu pra tentar caçar naquele cerrado pra caçar um calango, um lagarto, alguma coisa pra poder se alimentar e matou um gato. Só depois que ele foi ver que era um gato do mato. Na hora que ele tava tirando o coro passou um cara e falou: “rapaz não perde esse coro que esse coro é valioso”. Meu pai levou esse coro pra cidade e vendeu. Esse mesmo dia na cidade tinha um cara com um caminhão ajuntando gente pra vim embora pro Paraná. Meu pai não pensou duas vezes, voltou pra casa, avisou pra minha mãe: “pega o menino, pega o que tem”, porque tinha poucas coisas, panelinha de barro, jogamos encima do caminhão e assim foi 18 dias de viagem de Serra Talhada à uma cidade chamada Jandaia do Sul no Paraná. Esse foi o primeiro sofrimento porque as “Araras” que era chamado os nordestino que vinha de caminhão, a polícia rodoviária já tinha uma lei proibindo esse transporte, então eles lonavam o caminhão e as araras vinham tudo fechada. Então imagina só, aquilo o cara não tomava banho, 18 dias. Nós chegamos aqui e fomos trabalhar nas grandes lavouras de café, mas uma coisa eu te digo, não posso reclamar da minha infância; foi uma infância que realmente deixou muita saudade. O Paraná tinha muita fruta, muita água, muito lambari pra pescar, muita água pra gente tomar banho, passarinho pra caçar de estilingue, comia a fruta que queria. Roupa, calçado era uma coisa pouca, quase não se tinha, mas desse dia pra cá não se passava mais fome, foi uma infância muito boa. A infância ela tem que ser baseada num grande círculo de amizade, de integração, e a gente aprendeu muito cedo que uma coisa que tem que fazer parte da vida é a tal da cultura. Então desde pequeno, assim que pôde, o meu pai já conseguiu arrumar um rádio pra ouvir as músicas, meu pai já conseguiu aqui no Paraná a comprar sua sanfoninha pra tocar pra família pra nós ouvir. E outra coisa que eu ressalto da minha infância e das minhas dificuldades é que nós nunca pediu. Eu sempre falo que uma das coisas muito bem feita que compôs Humberto Teixeira e o grande Luiz Gonzaga é uma parte de uma música que se chama Vozes da Seca que fala: “eu dou uma esmola pra um homem que é são / ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”, porque deve ser a maior vergonha de um homem privilegiado com dois braços, duas pernas, duas vistas boas, andando, falando bem, ter que pedir. Dificuldade ouve, mas foi uma infância boa, eu tenho saudade dela.

Z - Essas músicas de viola dessa época, cantadas pelo pessoal do campo, trazia a problemática da cor da pele nas letras ou abordavam outros termas?

Erivelton - Olha, o preconceito racial sempre existiu. E naquela época as grandes fazendas de café no norte do Paraná, a maioria dos que moravam na época era descendente de italianos. Eu não sei se nós tivemos sorte ou se foi o nosso jeito de se sobressair, de conviver com esse povo, eu não sei se eu digo felizmente ou infelizmente, nós não tivemos essa coisa desse preconceito; nós entramos e saímos muito bem. Agora a música, a cultura musical, meu pai já tinha porque ele cantava Luiz Gonzaga. Luiz Gonzaga foi um artista que na minha visão é um artista completo. “Completo porque?”. O compositor, o artista ele deve amar o seu lugar e cantar sua terra, cantar sua pátria, né, cantar sua cultura. Luiz Gonzaga cantou todos os matos que tinha no Nordeste, cantou as rezadeiras, as benzedeiras, os macumbeiros, os jumentos, os cabritos, o sofrimento do nordestino, a alegria pela chuva quando vinha, as festas folclóricas do sertão... Então ele coroou, ele cantou tudo, e ensinou isso pro mais pobre ao mais abastado que o pobre tem que ter cultura. Quando nós viemos aqui pro norte do Paraná nós começamos a ver uma outra cultura que era na época a Moda de Viola. Assim como o gaúcho canta as suas cochilhas, assim como o pessoal do rap hoje canta essa cultura de quem vive nas periferias mais pobres, assim na época o caipira cantava o trabalho árduo de derrubar o mato, de plantar a lavoura, de colher, a composição dele cantava isso, né, cantava sobre o animal que era valorizado, não tinha tantos carros igual hoje; então ele cantava a pujança da sua mula, de seu burro. O poeta se inspirava naquilo. Ele cantava o carreador que puxava o café, cantava a bravura. Leo Canhoto na época cantou várias músicas que enaltecia o lavrador, chamava: “Soldado sem Farda”. O Pedro Bento tem uma música, uma moda de viola que fala assim: “só depois do meu tropeço eu fiquei sabendo o preço do feijão que a gente come”. Ele dizia da luta dura do cara que veio da cidade pra roça, com destino de melhorar na roça, largar o ar contaminado da cidade grande. Ele dizia: “Eu fui criado na cidade, estudei numa faculdade e cheguei a ser doutor / me casei com a Cristina uma jóia de menina, mais bonita que a flor / como era o nosso intento, logo após o casamento deixamos a capital / pensando em nosso futuro, procuramos o ar puro ali da zona rural (...) Faz um ano mais ou menos, que moramos nesse ermo, como to arrependido / carrapato e outros bichos, mosquito e outros bichos deixa a gente aborrecido / na noite que não tem lua o meu drama continua até o outro dia cedo / só na luz da lamparina, coitadinha da Cristina chega até chorar de medo / na cidade eu divertia, o trabalho que eu fazia pra mim era brincadeira / mas no cabo da enxada, sinto a barra mais pesada, quase morro de cancêra”. Entendeu então, ele não tinha outra saída a cantar isso. Aí eu aprendi a gostar dessa poesia, não que eu não goste das outras culturas, eu adoro as outras, mas o homem que tem a sensibilidade de fazer a poética de seu vivenciamento, esse homem tem que ficar no marco histórico do seu país, não pode ser esquecido. Puxa vida!!! Essas são a identidade do caboclo. Ou nós pra chegar no computador, será que nós pra chegar nessa vida moderna, nós não passou por isso? Eu sei que essa cultura não vai me levar a dinheiro, mas o dinheiro maior é a riqueza de preservar ela. Foi na época, então era essa a época caipira.

Z - Aqui no Paraná você já sofreu preconceito por causa da cor da pele?

Erivelto - É igual eu falei, eu não posso contar que eu sofri, se eu falar eu vou ta mentindo. Mas eu vi muita gente e presenciei e muitas das vezes eu fiz a defesa de amigos. Eu até penso o seguinte, tem gente que fala “mas eu não sou negro, eu sou moreninho”, pra mim isso já é um preconceito. Eu sempre brinquei com o pessoal dizendo que se passar um minuto do meio dia já não é mais bom dia, é boa tarde e se passar um minuto das seis, já não é mais boa tarde é boa noite. Então assim, se você teve essa cor cabocla, essa cor de cuia, você é da raça negra. Eu presenciei muitas armadilhas “Armadilhas!!!”, coisas que : “não, mas o cara é um preto da alma branca”, eu nunca aceitei isso. Se o cara dizia pra mim você é um preto da alma branca eu falava não, eu sou um preto da alma preta e tenho orgulho de ser negro. Se isso pra você é um problema, eu não devo satisfação nenhuma a você e não vou me rebaixar dizendo que eu sou um preto da alma branca. Que alma branca? Vi muita gente passar por isso e agente implantou muitas lutas. Saí na defesa da pessoa porque o que dói no vizinho dói na gente também. Agora eu graças a Deus, não sei se por sorte, ninguém tirou muita farinha comigo até porque sabia que ia ter uma resposta meio pesada.

Z - O Movimento Hip-Hop chegou no Brasil também como um resgate do orgulho da raça negra. A pessoa se afirmar: “Sou negro, sou favelado, mas não sou menos que ninguém por isso”. Como você vê a importância de movimentos como esse?

Erivelto - Olha, eu busquei um espaço, como todo mundo sabe, dentro da política de Foz. Busquei um espaço, fui conquistar um espaço. Eu sempre, mesmo na roça, sempre gostei muito de ver jornal, A Voz do Brasil, Projeto Minerva, e quando eu não podia comprar um jornal eu pegava um pedaço de jornal da rua que alguém já tinha lido. Quando eu conquistei esse espaço, dentro da Fundação Cultural, por exemplo, eu via os irmãos do Rap não ter um tratamento que eu achei que merecia. Porque? Porque, assim como na época do caipira nós cantava aquela cultura, os irmãos do Rap hoje cantam aquilo que ele ta vivenciando no dia a dia da sua comunidade. A oportunidade que ainda não chegou na periferia, a situação em que ele vive, e muitas das vezes convivendo até com o crime mesmo. Ora!!! Se ele ta vivenciando isso o que ele tem que fazer a cultura dele cantar? Ele tem que cantar o que ele vivencia, a dificuldade, a falta de oportunidade, o crime, a droga, porque ele vive ali dentro. Agora as cabeças, muito das vezes mais pensantes, começou a discriminar essa gente. Eu fui associando o Hip-Hop, o Rap, com o Cordel. Eu fui associando, o que aqueles poeta nordestino falavam, eu vi que a linguagem apesar da diferença ela tava inserida no mesmo contexto, e isso me doeu bastante. Me doeu tanto que quando me deram a chancezinha de ter um pouco de voz, de usar a instituição maior da cultura eu fiz questão de levar o Hip-Hop ao patamar um pouquinho melhor, sei que foi pouco ainda, o que eu fiz foi o que eu pude fazer. Mas foi o que eu pude, então pra mim foi bastante. Se eu pudesse fazer muito mais eu estaria hoje pensando: “puxa, mas eu fiz pouco, eu fui omisso”. Não, eu só podia fazer aquele pouquinho, mas o pouco que eu pude fazer eu fiz. O meu sonho dentro disso aí é o seguinte, dotar essa cultura de instrumentalização, de instrumentos, para viabilizar para que o povo escute. Mas para que o povo possa escutar, não adianta escutar só como uma música qualquer, o rap não é só uma música, o rap é narrativa de fatos e narrativa de fatos você tem que aprender a interpretar. O dia que esse povo começar a interpretar isso com certeza estaremos dando uma grande colaboração pro crescimento da sociedade. É uma bela de uma cultura.

Z - Um tema que ainda é polêmica: Cotas para negros.

Erivelto - Pois é, eu fiz parte do movimento negro da cidade de Foz do Iguaçu (MONARFI) e levei muito pau por falar o que eu penso. Mas assim como toda democracia que não tem oposição, é democracia burra, então qualquer instituição que você estiver você tem que respeitar o pensamento do seu oponente e nunca omitir o seu pensamento. Ora, e porque eu levei muito pau? Porque eu sou totalmente contra qualquer espécie de cota que se dê por causa da cor da pele. Eu sou contra mesmo. Aí que ta o seguinte, isso é uma política de tapeação. Pra ganhar a simpatia do pessoal de cor, da nossa raça que é a raça negra, eu declarei isso em televisão, em vários canais, é uma tapeação pra conquista política. Olha, qual é a diferença hoje por exemplo, do aluno periférico, que estuda na periferia, do branco e do negro? O sofrimento do negro ta sendo maior do que o do branco da periferia? Não é. A escola pública que o negro estuda e a do branco pobre de periferia é diferente? Não é. Então a cota, ela tem que ser mudada. A cota tem que ser direcionada pro aluno que vem da escola pública. O vestibular tem que ser o mesmo. Ele quer testar com isso o que? Que a inteligência do negro é menor do que a do branco, por isso merece um vestibular mais fraco? Olha, mas não tem isso escrito nem na bíblia. Acredite ou não acredite, Nelson Mandela falou que já tinha lido todos os livros da história da humanidade e não encontrou nenhuma linha falando que a inteligência do negro fosse inferior que a inteligência do branco. Se a inteligência, o QI, Deus deu essa sabedoria, Deus não é irracional, não vai dar pra um ser humano mais inteligência que pra outro. Cada um tem sua vocação. Se o negro não teve vocação pra seguir a carreira de engenharia, mas teve pro esporte, teve pra outra cultura, pra desenvolver outra coisa. Não que eu to dizendo que não tenha capacidade pra desenvolver engenharia, medicina e tudo isso. Cuba é uma grande prova disso, uma das grandes escolas de medicina avançada é em Cuba. E porque se lá quase todo o pessoal é negro? Isso aí ta errado, nós vamos ter que fazer uma luta o seguinte: nós que fomos por muitos anos discriminados, agora não vamos discriminar o nosso periférico branco. Precisa rever isso, nós não podemos aceitar esse preconceito nem de religião, nem com nossos irmãos gays, nem com nossos irmãos judeus e nem com nossos irmãos brancos. Quer dizer que vamos inverter esse papel agora? Não. A cota tem que existir. Porque quem estuda em escola particular pode pagar cursinho, depois vem tomar as vagas do negro e do branco nas faculdades públicas. Isso eu não concordo. Agora, dizer que negro precisa de cota, não precisa. Me dá oportunidade de fazer advocacia ali, sem eu pagar, que eu vou provar que vou ser um advogado tão bom quanto o branco. É só dar uma chance pro cara.

Z - Polícia e Capitão do Mato, Navio Negreiro e Camburão, tem alguma semelhança?

Erivelto - Pra mim não tem diferença nenhuma. A única diferença que posso achar é que a gente não pode generalizar a polícia. A polícia tem seu papel e ela que cumpra bem. O problema é a cabeça de muitos que ta na polícia. Então porque eu sou uma pessoa diferente, ou por ser as vezes negro, a polícia já chega dando dura porque acha que todo mundo é ladrão, e não é assim. Mas isso ta mudando, até porque os maior ladrão e os maior larápio não se transveste de mal vestido, de barbudo e de negro. Né? Os maior ladrão, os maior assaltante pra assaltar banco eles chegam sempre engravatadinho, pastinha 007, coisa de rico. (risos). Jóia no pulso, anel nos dedos. Até porque se fosse assim era fácil de combater, o cara via chegar no banco aquele cara meio sujo e maltrapilho já dizia: é o ladrão. Mas não é, não existe mais este pensamento. Agora, eu vi cenas, infelizmente até aqui na cidade que ainda foi lamentável, generalizar: “essa aí é a turma da maconha, é a turma do crack, é a turma da droga”. Ora, a polícia tem que ta preparada e inteligente pra saber quem ta usando a droga, quem é que ta passando a droga, porque esse é o pior de todos, pra ela ir direto na ferida, direto no cara certo. Ela não pode só porque o cara ta lá com a calça larga generalizar. Agora tem uma coisa que eu vou dizer e aí o negro precisa melhorar, o branco da favela, da periferia precisa melhorar, esse negócio de dizer que é coitado. “Eu sou um coitado, eu não vou procurar”, não, ele tem que buscar. Tem que buscar seus direitos, tem que estudar, buscar escola, tem que ir pra cima, pra tirar essa máscara que se põe de que você é um coitado. “eu não sou um coitado, eu sou um servente de pedreiro e daí, eu sou um catador de reciclável, passo com minha carroça, mas eu sou cidadão e devo ser respeitado como um cidadão, não sou coitado não”. Tem que lutar desesperadamente pra busca de conhecimento, porque se não, ele vai ta sempre fadado ao fracasso.

Z - A Cultura Negra continua fiel às raízes africanas?

Erivelto - Eu acho que a cultura negra, ela decaiu bastante. Ela ainda é forte, ta bastante forte em várias regiões, ela ta bem regionalizada, até porque onde nós vivemos aqui a colonização se deu mais pela força européia, né. Mas, por exemplo no Maranhão, eu tive pesquisando esses últimos tempo, a cultura é muito boa, né, muito rica. Passaram a terra aos quilombolas como é de direito deles. O Maracatu em Pernambuco. a tradição da capoeira, as tradições do negro. A Bahia. O Rio de Janeiro ainda com suas comidas típicas, feijoada, as caipirinhas, isso tudo aí faz parte de cultura. A cultura, as vezes a gente pensa só na música, mas ela ainda é forte. Quem que não gosta de uma boa feijoada? Agora, quem come a feijoada deveria ta consciente que isso ali faz parte de uma cultura negra. Entendeu? Eu penso o seguinte, o desenvolvimento que vem galopante nesse país, não pode abafar, que essas coisas são da cultura negra; nós não podemos deixar passar despercebido. Acho que os apresentadores, as pessoas da mídia tem que dizer: “olha, isso aqui é cultura negra”. Mas a cultura negra se mantém razoável. Até porque essa miscigenação, vai se dando, né. Nós não podemos fazer um apartheid: “eu sou negro, só caso com negra, você é branco, só casa com branca”, não pode haver isso aí, a coisa ta mudando”. Muita gente acha, eu já vi artista famoso que diz que os negros só procuram loira pra casar, mas eu não concordo muito com essas coisas. Eu acho que se procura quem tá na frente, quem encontrou, quem deu certo, independente da cor que é. Eu tenho um amigo que é negão casado com japonesa. Ué, e daí? Ele não podia ter casado com ela e ta feliz pro resto da vida? Vive bem. “Ah, eu não quis minha felicidade, só porque eu era negro e ela japonesa”, eu acho que não. Não é assim, coração é terra que ninguém anda. Se você é negro e achou uma negra pra viver, ótimo, mas se achou uma pessoa branca, e daí?

Z - Agora, as religiões de raiz africana ainda sofre um grande preconceito, né?

Erivelto - Ah, essa sofre. Até pela própria cultura, né. Porque é o seguinte, os negros tiveram de deixar suas religiões ocultas e até usar várias formas pra poder cultuar isso escondido. E se criou um mito aí que o negro é macumbeiro, que mexe com o diabo, com coisa ruim, se criou esse mito. E isso é uma coisa interessante, a própria religião católica fez uma barreira muito grande, os negros tiveram que mudar o nome do santo deles, sofreram esse tipo de coisa, e isso, infelizmente esse preconceito existe. Existe e é forte, né, hoje quando ainda se fala em candomblé muita gente: “nossa senhora!!!”. E depois que a gente vai lendo essa coisa toda, não é isso. Ô meu Deus do céu. Eu já acho um erro enorme os jesuítas chegarem aqui e querer batizar os índios e fazer os índios ter uma religião. Ora, deixa o índio lá na cultura dele, se aquele povo que vivia lá, nus, mas se respeitando, cultuando a sua família com respeito, criando as suas crianças dentro da educação, se aquele pessoal não tem direito à salvação não vai ser o padre indo lá pra catequizar o cara, pra batizar e fazer não sei o que, que vai conseguir. Eu não acredito nisso, acredito em Deus, o Deus dos negros, dos índios, do chinês, acredito que é o mesmo. Agora, forçar a cultura do cara, quebrar aquilo que o cara tinha de cultura pra dizer que o cara tava no caminho da perdição, infelizmente discordo totalmente disso. Discordo disso, isso foi tapeação, isso foi pra ganhar dinheiro. Isso aí não adianta mentir, eu sou uma pessoa muito séria nas minhas coisas, o que aconteceu foi isso. E se criou esse mito desgraçado e até hoje, infelizmente existe essas barreiras. Eu começo a ler a história do descobrimento do Brasil, e “encontraram os índios saudáveis, bonitos, cultuando seu deus tupã” foram lá tirar isso da cabeça do cara, pra ensinar até um monte de maldade (risos). Os caras não matavam, não roubavam, os caras não prostituíam, porque tinha que mexer com essa gente? Agora tem os missionários, vai lá na África profetizar. Vai cuidar da família dele!!! eu não acredito nisso. Não sei se to errado também, né, não sou dono da verdade.

Z - Vamos finalizar com uma idéia pros irmãos.

Erivelto - É, eu fico feliz da vida, né, e sei das dificuldades que vocês têm pra manter essa cultura e também da discriminação que existe. Mas é assim mesmo, você tem que fazer a sua parte, você não vai conseguir mudar, conscientizar o mundo. O que você tem que ta questionando é: “será que eu to fazendo a minha parte?”. E eu espero então aí poder participar muito mais, né. Fui bem tratado todas as vezes que participei. Fui conhecer, porque pra falar bem ou falar mal tem que primeiro conhecer. Eu só acredito que será possível se pessoas que tem essa filosofia de lutar por essa causa não desistirem. Que quando ele desistir ter sempre outro pra segurar a bandeira. Foi o sonho de grandes poetas, cantadores, um deles era o Raúl Seixas. O sonho dele era acabar com a ditadura militar, quando muitos calavam a boca, tinha quem preferia ficar encima do muro e não opinar, ele foi buscar uma linguagem própria de dizer: “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante / do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Só uma palavra dessa, cara... é uma pena que hoje muita gente canta isso e não sabe o que ele quis dizer. “eu devia tá muito contente por ter um bom emprego, ter um carro, ser um dito cidadão responsável, ganhar dinheiro, mas eu me sinto é decepcionado / porque tem uma porção de coisas para conseguir e agora eu me pergunto e daí? / nós temos uma porção de coisas pra conquistar e não pode ficar parado”. Embora com suas dificuldades, com a desigualdade violenta, a pobreza abandonada do lado, o rico cada vez mais rico, o governo dando cesta básica pra ter popularidade, porque isso também é um erro viu. Nós não precisamos de cesta básica, não vou mentir não, eu sou eleitor e fã do Lula, até porque, quem sabe essa tendência que o mundo ta tendo na área política já seja uma mudança. Nós já temos um índio presidente de um país, já temos uma mulher, nós já temos um torneiro mecânico presidente de um país, e não ta passando vergonha não, se ele não pôde fazer tudo os que ficaram pra trás fizeram muito pior. E me parece que pra coroar essa história e pra fechar com chave de ouro eu acho que vai ser um dos pico máximo da história do mundo, um negro na maior potencia que é nos Estados Unidos. Olha, eu to torcendo tanto quanto se a eleição fosse no Brasil. Agora não adianta só torcer também, depois nós vamos ter que rezar e torcer pra que ele faça realmente uma revolução pra dizer pra todo mundo: “vocês viram que não era a cor que fazia dos Estados Unidos uma potência maior ou menor”. Então essa desigualdade que ainda tem, e ainda a cultura, que eu acho que a maior pobreza é a cultura do nosso povo, que ainda vota e ainda idolatra o cara que vem dar o tapa nas costas, bate palmas pra ele porque ele deu uma cesta básica. Essa é a maior dor em mim. Com meus 53 anos, já quase me aposentando, talvez eu vou partir ainda com essa dor. Porque o cidadão na hora que o político chegar pra dar a cesta básica, pra dar o tapa nas costas ele falar: “amigo, muito obrigado, mas no senhor eu não voto, sabe porque? Porque eu to precisando é trabalhar. Eu to precisando derramar o meu suor pra quando chegar em casa eu ter orgulho do que os meus filhos comer seja do meu trabalho. Eu to precisando é da escola pro meu filho pra ele disputar com direito de igualdade com os filhos dos ricos”. Essa é a obrigação dos políticos. São dois lados da moeda, o malandro que passa dando a cesta básica pra ganhar e o coitado que aceita e não sabe cobrar seus direitos, que é o direito ao trabalho, à vida, à moradia decente. É um direito do cidadão. Político não tem nada que bater palmas pra ele. O cidadão por mais miserável que seja ele paga seus impostos pra isso. Então não podemos bater palmas quando o cara vim com uma cestinha básica ou um tapinha nas costas. Isso aí um dia, se Deus quiser, acaba. Aí essa ditadura que o Raúl Seixas lutou pra acabar, eu tenho certeza que se ele estivesse vivo hoje ele estaria cantando essa outra ditadura que talvez seja até pior. E que nossa cultura tem que cantar. E que o Rap faz muito bem. Os nossos caipiras, nossos sertanejos, nossos artistas deviam cantar isso, cantar essa mudança. Canta isso, põe na letra. Põe na letra: “você é safado. Você ta dando remédio na hora da dor, quando você deveria ter dado oportunidade antes do cara sequer ter a dor”. As letras tem que falar isso. O Rap é um que ta brigando por isso. Nem sequer a nossa Bossa Nova que fazia crítica à ditadura ta fazendo isso. Isso é uma ditadura, é uma escravatura. Quem compra voto da periferia dando cesta básica e remédio e deixa de dar o emprego, de fazer o desenvolvimento do país. Isso não é uma ditadura? Ela mudou. São três tipos de escravatura, a que escravizou o negro, a que escravizou o imigrante e a que escraviza hoje brancos, negros e imigrantes das periferias. O pessoal muitas vezes me perguntam porque eu não saio candidato. Porque eu vou perder. Vou perder mil eleições. Porque eu vou soltar meu panfleto dizendo: “se é pela minha luta, por esse ideal aqui, vote em mim. Se for pra vim pegar as coisas na minha casa, cesta básica, remédio, não vote porque não vai ter”. Aí o pessoal da periferia não vai votar em mim. Então muito obrigado, agradeço mesmo, tomara que vocês continuem na luta. E contem comigo, o que eu puder fazer.

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