segunda-feira, 11 de agosto de 2008

NOVELA DA VIDA REAL

Mais um Cidadão José. Cap. 29

- Só mais 15 dias e vamos poder trabalhar em paz.

Após falar, Mano Gê pegou sua PT, colocou na cinta e saiu pra fora da casa. O chinês estava falando no celular e ninguém entendia nada do idioma. Certamente estava falando com alguém da máfia chinesa, que estava se envolvendo no tráfico de drogas. Com o enfraquecimento do comércio no Paraguai, os mafiosos migraram para o narcotráfico. Chineses, coreanos, árabes, libaneses estão dando assessoria para esses malucos que visam dominar todo o comércio de ilícitos nessa região. Colômbia, Bolívia, Paraguai, Argentina, Chile e diversos outros países da América Latina interligados na rota do tráfico e do crime.
Os malucos saíram e reuniram-se do lado de fora do barraco. Todos já tinham aberto seus envelopes e estavam vendo as fotos e os dados da pessoa que teriam de matar. José estava com seu envelope na mão e ainda não havia mexido nele. Sua mente tava a milhão, precisava pensar rápido. Nunca imaginou ter que matar ninguém, ainda mais uma pessoa que ele nem conhece, que nunca fez nada pra ele. Lembrou de um documentário que assistiu na casa do Mano Nego. Conta a história de uma tribo indígena da Amazônia que, por causa de uma briga, dividiu-se e começaram a se matar entre si. Usavam lanças e atacavam na madrugada, ferindo de morte os inimigos. A tribo foi quase totalmente dizimada durante anos e anos de matança. Um dos índios que sobreviveu conheceu um missionário que levou-o para visitar os EUA. Em solo estadunidense, esse índio assistiu a um filme da segunda guerra mundial e se assombrou. Ao ver os aviões jogando bombas ele indagou: “Como os homens brancos conseguem matar pessoas que nem conhecem”.
Um maluco que estava ao lado de José, após analisar o envelope, deu uma risada cabulosa e falou gritando:

- Ahahahahha. Um gambé. Esse é meu, ahahahahah. Duas mil lascas a mais pro maluco aqui. A favela agradece. Aahahhaha.

Na seqüência tirou um revólver e deu dois tiros pra cima. Olhou pro José e perguntou:

- Não vai abrir o bagulho, Zé?

- To abrindo já.

Meio desajeitado José abriu seu envelope e se assustou quando leu: Soldado Farias. José teria de matar um policial. Foi tirando os papéis do envelope. Tinha fotos do gambé, de farda, com a família, num restaurante, com os amigos. O maluco que estava do lado esticou e pescoço e falou em voz alta:

- Carái Zé. Cê também pegou um gambé. Mas nóis tem sorte mesmo hein tio. Vamo jogar na mega sena. Ahahahahah.

José não deu bola, estava com cara de poucos amigos. Um maluco que era conhecido como poeta estava rabiscando algo num pedacinho de papel. O Chinês estava ao lado do mano Gê, que dechavava uma erva pra bolar um baseado. Todos os manos estavam fora da casa. A noite vinha chegando e dois rapazes saíram para comprar vinho em um barzinho próximo dali. Fizeram uma vaquinha com os malucos que queriam tomar um gole. Um nome martelava na cabeça de José: Soldado Farias. José sempre teve muita raiva de polícia e várias vezes aprovou a atitude dos malandro da quebrada que madaram bala na viatura. Mas agora, vendo a foto do gambé com a família, percebeu que se consumar o ato, vai destruir uma família e deixar uma filha sem pai. Igual nos desenhos animados, um capetinha soprou no seu ouvido: “e o tanto de famílias que eles já destruíram?”. Antes do anjo falar algo em seu ouvido, os malucos interrompem, servindo-lhe um copo de vinho. O poeta tomou um gole de vinho, se encorajou e tirou do bolso o papel onde ele havia escrito algo. Leu em voz alta uma poesia de cordel que acabara de criar:

Se o cara é maluco e é firmezão
Não erra o tiro, não atira no pé
Com mais emoção se o ganso é gambé
2 mil de gorjeta pro bolso do drão
Pra mim é mil grau, é satisfação
Zerar esses loke, depois dominar
Abrir o caminho pros manos trampar
Depois vou curtir, cair na gandaia
Em Camboriú de férias na praia
Com muito dinheiro pra poder gastar

Os malucos bateram palmas enquanto davam risadas. José também riu, só que não achou graça. Queria sair logo dali, arrumar suas coisas e ir embora. “Detenção sem muro / quero fugir daqui, fugir daqui...” cantava a música de Facção Central que tocava baixinho no carro do Mano Gê. Mas, ainda tinha uma noite de trabalho pela frente. Era o último dia de trampo, só voltarão depois de 15 dias. Os malucos guardaram no bolso o dinheiro que estava dentro do envelope. Alguns colocaram os envelopes dentro da mochila, outros deixaram ali na mesa para pegar depois do trampo.
Desceram pra barranca 11:30 da noite. Para José a noite seria longa. Sua mente só pensava em sair fora dali o mais rápido possível. Pensava no seu truta, Mano Branco e na covardia que fizeram com ele. Pensava no seu filho, o Neguinho, não sabia se daria tempo de buscá-lo, ou se a Preta deixaria José levar ele. Não sabia se a Preta aceitaria ir junto. Deixou as caixas caírem diversas vezes. O chão parecia estar mais liso e as caixas mais pesadas. O caminho parecia mais longo e os companheiros de trabalho mais alegres e mais falantes. José ensaiava um sorriso quando contavam algo engraçado pra ele, mas logo fechava a cara. Dezenas de carros e motos visitaram a quebrada naquela noite. O Mano Pio chegou num carro com três malucos, e ficaram trocando idéia com o Mano Gê durante uns40 minutos. Ele passou pra um dos malucos a chave do carro do Mano Branco e o maluco colocou umas caixas no porta-malas e saiu em alta velocidade.

José saiu do trampo as 4:30 hs da madruga. Dessa vez não tinha com quem pegar uma carona. Subiu a pé a caminho de um ponto de ônibus. Olhou para trás e viu uma viatura vindo em sua direção. Não se preocupou, estava desarmado. O revólver que ele ganhou de presa estava em casa. Não usou uma única vez. Estava despreocupado, quem não deve não teme. Era só bolar uma história pra dizer de onde está vindo. Mas, José ainda estava próximo do trampo e os gambé certamente farão pressão. A viatura chegava devagar, silenciosamente. De repente José lembra do envelope que ele carrega dentro de uma sacolinha que contém os dados do policial. Se assombrou e olhou pra trás, pra ver se dá tempo de dispensar o fragrante. Os gambé perceberam o nervosismo e aceleraram. E agora José? Como explicaria isso ali? E os três mil reais na carteira? Certamente será levado preso, ou coisa pior. O vento frio soprava, uma neblina cobria uma parte da estrada, o dia ameaçava clarear. Era quase 5 da manhã, as ruas ainda estavam vazias. O coração de José começou a bater mais forte, ainda mais quando a viatura estava ao seu lado, agora andando devagarinho e um gambé olhando pra ele. Não olhou pro lado, ignorou, fez de conta que não percebeu. A viatura cantou o pneu, acelerou e encostou em sua frente, obstruindo sua passagem.
José olhou pro gambé que estava na boléia. Achou-o familiar. Já havia visto aquele rosto em algum lugar. Seria impossível lembrar-se de todos os enquadros que já levou, para descobrir se já foi abordado antes por aqueles policiais.

Fixou o olhar no gambé e levou um susto. Leu na farda do pé-de-porco: Soldado Farias.

(Lizal. Na próxima edição mais um capítilo)

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