A abordagem geral sobre as favelas ocupadas pela Polícia Militar, especialmente onde há experiências de Unidades de Policiamento Pacificador (UPP's), está muito equivocada. A função de qualquer atuação do Estado em um espaço da cidade deveria ser a de garantir direitos e melhoria da qualidade de vida da população que vive ali — obviamente levando em consideração a opinião de quem lá mora. No entanto, não me parece que é bem isso o que está acontecendo...
Outro dia, lendo um artigo sobre as favelas ocupadas pela PM na Revista d'O Globo, me lembrei de uma madrugada de insônia, tediosa, em que cismei em ligar a TV para “assistir qualquer coisa”, mesmo sabendo que “qualquer coisa” na TV nessa hora é muito pior do que o tédio. Não encontrando nada, entrei na velha dinâmica de ficar mudando de canal, meio que na inexplicável e automática esperança de que algum daqueles seis ou sete canais passasse a transmitir algo diferente e interessante em intervalos de um minuto. E foi reproduzindo este comportamento bizonho, que encontrei algo ainda mais bizonho que meu comportamento: o programa do Otávio Mesquita. Neste programa, ele passava um verão em um hotel de luxo no México. Mostrava a piscina, os drinks, o bar, o restaurante, a vista, os quartos, os jardins etc. Lá pelas tantas, mostrou a maior atração do hotel: empregados invisíveis! O hotel conta com uma rede de túneis pelos quais seus trabalhadores (milhares, para manter o luxo) circulam e “só aparecem quando chamados para servir um cliente!”. A invisibilidade do trabalhador está cada vez mais vinculada ao projeto de sociedade de consumo. Quem assistiu ao vídeo oficial da campanha Rio 2016 viu um Rio de Janeiro sem favelas. Os projetos governamentais para as favelas incluem — todos — muita polícia e alguma maquiagem, como a pintura de casas visíveis do asfalto com tintas de cores fortes e bonitas. E quando se pensa sobre inclusão e favela, às vezes se esquece de pensar nos próprios moradores das favelas. A matéria que me remeteu a uma noite bizonha falava das favelas sem falar dos favelados. Abordava “programas agradáveis” que a classe média pode fazer nos morros cariocas ocupados pela PM, os preços, as vistas, os sabores, as cores... Mas não falava dos trabalhadores. Assim como essa, li outra que falava do quanto a ocupação policial valorizou Botafogo.
Eu me pergunto: valorizou pra quem? Quais são os efeitos reais dessa valorização? Chego a me desesperar, às vezes. Vejo formas sem conteúdo, matérias sobre a cidade que não discutem a cidade. Um jornalismo propagandista, não investigativo, que se baseia em releases governamentais. Compromissos, qualquer um, menos com a Verdade. Da mesma maneira, novamente, li as notícias mentirosas de que um policial militar fora espancado em um baile funk na Cidade de Deus. A “notícia” foi baseada única e exclusivamente em uma nota da Secretaria de Segurança Pública, que contrastava justamente com o próprio inquérito da Polícia Civil, taxativo na definição do local, que não era o baile. Sabendo do erro, as pouquíssimas notas publicadas eram minúsculas e não cumpriam bem a tarefa de desmentir as capas dos dias anteriores. A mídia comercial, formada por verdadeiras linhas de produção de papel, esquece-se de sua função social: informar. E, buscando o lucro, reproduz a lógica do consumo, explorando trabalhadores jornalistas, que são pagos para ignorar ou falar mal de trabalhadores não-jornalistas. Por isso, ao se dirigir à classe média, fala da valorização imobiliária de Botafogo e fala dos “programas legais” que se pode fazer nos morros, sobretudo elogiando o policiamento nas favelas. Afinal, o critério para se fazer essa análise é o critério do consumo: ver e pensar as coisas a partir do ponto de vista do indivíduo consumidor. Segundo esse critério, de fato não há razão em se falar de direitos de quem lá vive. Portanto, reside aí o primeiro equívoco: asfalto e favela continuam separados, divididos pelo muro da abordagem pública das grandes corporações, que constrói um senso comum que desumaniza e invisibiliza os anfitriões dos locais onde ocorrem “os programas legais”.
Nem a ação estatal está preocupada em unir de fato a cidade, nem a abordagem midiática produz isso. Já quando analisamos o discurso oficial que atinge camadas mais populares ou que abordam temas mais próximos a políticas públicas, o foco muda um pouco: a abordagem fala do medo, da violência, dos perigos, dos riscos... Fala de tudo aquilo que não foi dito no videozinho do Rio 2016, ou seja, da necessidade que o povo tem de ser policiado, mesmo que abrindo mão de vários direitos. Obviamente, falar de consumo para quem serve o consumidor, falar de trabalho para quem trabalha, falar de direitos para quem não os tem, não ajuda na propaganda oficial da Política de Segurança que controla uma sociedade altamente desigual. Então, vamos ao que interessa: os problemas que temos visto nisso tudo.
Ao falarmos de acesso à energia elétrica, já começamos mal. A Light chegou ao Santa Marta trazendo a... escuridão! Rapidamente instalaram medidores de energia para viabilizar a cobrança das contas de luz nas casas. No entanto, apesar da rápida instalação de medidores de energia (e até cortes de luz em algumas casas), a iluminação pública ainda não foi instalada. Alguns becos e vielas ficam às escuras, crianças não podem mais
brincar à noite... Ou seja, a qualidade de vida piorou com a chegada da Light. Mas a arrecadação da Light aumentou. E isso ainda não foi pautado. Lembremos que o valor da conta de luz que pagamos está submetido a um cálculo que leva em consideração a demanda total de energia. Ora, a demanda diminuiu e tende a diminuir mais ainda, e a arrecadação aumentou e tende a continuar aumentando. Então, será que os governantes têm se esquecido de refazer o cálculo e diminuir a taxa de energia da cidade? Por que não vemos isso também? Os muros foram construídos em favelas que diminuem de tamanho, segundo dados oficiais. A justificativa para a construção dos muros foi “conter a comunidade”. Será que é muito difícil perceber que o discurso não condiz com a realidade e que tem algo de estranho nisso tudo? As câmeras no Santa Marta foram instaladas do dia pra noite, sem discussão alguma com os moradores vigiados. O policiamento mais uma vez se mostra a serviço do controle dos pobres e não da garantia da segurança dos mesmos — o que tem se manifestado também nas abordagens violentas e agressivas, desrespeitosas de direitos, com relatos de policiais homens revistando moradoras, deboches, agressões físicas, entre outros.
Muitos barracos de madeira ainda não foram substituídos por casas de alvenaria. Mesmo as casas de alvenaria que foram feitas são muito pequenas, abaixo do mínimo recomendado. O problema dos valões ainda não foi resolvido. Um transporte muito comum na Cidade de Deus, o moto-táxi, foi retirado pela ocupação. E nenhuma alternativa de transporte público foi pensada. Atividades culturais estão praticamente suspensas em muitos dos lugares ocupados, sem opção de convívio social, divertimento e lazer para a juventude pobre. Um jornalismo sério deveria se perguntar: por que fuzis e câmeras onde não há mais varejo de drogas armado? Por que quando a Light chega traz a escuridão? Por que muros em favelas que diminuem de tamanho? Por que não estamos discutindo direitos, ao invés de discutir oportunistas, insensíveis e sádicos divertimentos em áreas pobres sem uma relação humana com os que ali vivem? Por que não queremos ver aqueles que trabalham? Por que discutimos a cidade sem considerar quem faz a cidade funcionar?
Enquanto o Otávio Mesquita for a vanguarda da grande mídia e das políticas públicas, sinceramente, não teremos solução de fato para a cidade.
(Guilherme Pimentel é estudante de Direito, militante do Movimento Direito Para Quem? e assessor do mandato Marcelo Freixo).
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