sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

YCUÁ BOLAÑOS: (Por: Emílio Gonzalez).

A AMARGA LIÇÃO QUE VEM DO LADO DE LÁ DA PONTE DA AMIZADE

Era manhã de domingo. Já passava das 11 horas e, como de costume, centenas de pessoas chegavam ao hipermercado Ycuá Bolaños, situado na movimentada avenida Artigas, uma das mais importantes vias expressas da cidade de Asunción, capital do vizinho país, Paraguai. Naquele dia, no entanto, a rotina das corriqueiras compras do almoço dominical seria bruscamente interrompida por conta de um pequeno incêndio ocorrido no setor da padaria. Teria sido apenas mais um incidente. Informado sobre o ocorrido pelo celular, o empresário Daniel Paiva, que havia se ausentado momentaneamente do estabelecimento, orientou o gerente a ordenar o fechamento imediato das portas, afim de evitar que as pessoas saíssem sem pagar ou promovessem saques e roubos. O medo, como sempre, recaía sobre uma massa homogênea, sem rosto e amorfa chamada “povo”. Como a grande maioria da população paraguaia, as pessoas que estavam no Ycuá Bolaños naquela manhã de domingo era gente simples, humilde, pobre, trabalhadores. Numa situação de perigo iminente, como um incêndio, é normal que os donos do capital pensem em proteger seu patrimônio. Os pobres, nesta hora, passam a ser vistos como potenciais inimigos, porque pretensamente “aproveitadores”.

A ordem de fechamento das portas baseava-se nessa racionalidade. O problema é que, em questão de minutos, as até então inofensivas chamas geradas num local isolado do mercado viajaram pelo forro do teto, consumindo e alimentando-se do gás ali acumulado durante anos. Seguiram-se algumas explosões, que afetaram o sistema elétrico do prédio, e a queda de energia repentina impediu que a reabertura das portas fosse efetuada, uma vez que estas eram movidas eletronicamente. Em pouco tempo, todo o mercado ardia em chamas, e enquanto o forro incandescente despencava na cabeça das pessoas em pânico, a escuridão, o calor extremo e a fumaça tóxica terminavam por compor aquele terrifico cenário de horror. Ao vivo, as principais emissoras de televisão transmitiam para o país inteiro o esforço e o desespero de bombeiros e voluntários que, do lado de fora, lutavam para controlar o fogo, abrir buracos nas sólidas paredes de concreto e tentar resgatar pessoas ainda com vida entre os corpos que jaziam calcinados pelo fogo. Era 1o de agosto de 2004, e naquele dia, uma nuvem escura e espessa cobriu de luto o céu da capital paraguaia.
Nos dias que se seguiram, o número de vítimas não parava de crescer. Ao final, a estatística macabra revelava dados assustadores da tragédia: mais de 400 pessoas perderam a vida neste incêndio, além das outras milhares que ficaram com seqüelas físicas e psicológicas até hoje difíceis de cicatrizar.

O incêndio do mercado Ycuá Bolaños marca uma das páginas mais tristes da história recente do vizinho país. Mais do que isso, foi um marco visível dos efeitos trágicos e desumanos gerados através da contradição presente numa sociedade capitalista. Não fosse o saldo mortal, para os donos do dinheiro, aquele teria sido apenas mais um dia como outro qualquer, no qual a preocupação com a defesa do patrimônio colocou em segundo plano a preocupação com as vidas humanas. Detratados pela imprensa paraguaia e sociedade como os grandes vilões desta tragédia, os proprietários do mercado, Juan e Daniel Paiva – pai e filho, respectivamente -, infelizmente apenas representam uma pequena parcela da racionalidade materialista que movimenta esse sistema maléfico, desigual e desumano em que vivemos. Sistema este que transforma pessoas normais – proprietárias ou não – em seres neuróticos, esquizofrênicos, perturbados, avarentos, desconfiados, incapazes de definir, no momento de tensão e perigo, o que de fato tem mais valor; o dinheiro ou a vida.

A civilização criada pela sociedade de mercado em que vivemos, materialista e consumista, na verdade, é a própria barbárie. O culto a valores tão apreciados e apregoados pela burguesia como consumo desenfreado, acúmulo de bens, ostentação, etc, nos torna também cúmplices de outros milhares de assassinatos e atos violentos contra a humanidade que ocorrem todos os dias. Somos cúmplices do assassinato de centenas de pessoas vitimadas pela guerra entre traficantes e policiais; enquanto os primeiros aspiram poder se inserir enquanto “consumidores” de uma sociedade cujos valores são reguladas pela capacidade de comprar, os policiais matam e morrem defendendo o status quo de quem já alcançou o poder. É trabalhador matando trabalhador. Também consentimos com as cotidianas invasões que a polícia promove em favelas e bairros pobres em busca de “bandidos”, todas as vezes que ocorre algum assalto a uma grande instituição financeira ou quando o patrimônio de algum grande proprietário é atingido. Tornamo-nos indiferentes ao menor mendigando nos faróis através do vidro dos nossos automóveis, devidamente fechados para evitar qualquer contato com aquele “mundo”. Fingimos nada ter a ver com o assassinato do menino pelo segurança da loja enquanto aquele tentava furtar o “tênis” e a “camiseta” que a televisão todos os dias afirma ser o sinônimo da moda, beleza, status e prestígio com as garotas.

A inversão de valores também naturaliza guerras genocidas. Pensamos que, se os EUA matam no Iraque, o fazem porque PRECISAM proteger sua indústria e fontes de energia. Achamos isso natural, e até chegamos a cogitar se, no lugar deles, não faríamos exatamente o mesmo. De maneira análoga, somos inclinados a chamar a polícia se alguém passa por nós “em atitude suspeita”. Julgado por nós como “possíveis” bandidos por conta de trajar roupas simples, pela cor da pele ou pelo lugar de moradia, assumimos a pobreza como pré-requisito da índole criminosa. Enquanto tomamos cerveja confortavelmente instalados em nossas varandas, ou dirigimos nossos confortáveis, modernos e protegidos automóveis, ou mesmo quando assistimos TV em nossos eficientes aparelhos e manuseamos nossos modernos computadores, tememos pelo “diferente” que passa do outro lado do muro, que está parado na esquina, pelo aspecto pobre de sua roupa e pela cor da sua pele. Tememos pelo nosso “patrimônio”, e nos sentimos aliviados quando a polícia passa por ali e o aborda. Quase infartamos se o infeliz resolve, por alguma razão, parar no portão da nossa casa, ainda que para pedir alguma informação ou um simples copo de água fresca. Embora não admitamos, é a cumplicidade da sociedade com relação ao “medo” do pobre que “autoriza” ações violentas contra eles.

Os exemplos são muitos, e não é preciso lembrar um por um. Apenas para citar ações como aquela cometida contra menores moradores de rua que dormiam na frente da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro em 1993, ou contra o índio pataxó, confundido com um “mendigo”, queimado vivo enquanto dormia numa praça em Brasília, em 1997. Já nos acostumamos a escutar pelo noticiário informações sobre moradores de rua que são assassinados na cidade de São Paulo, e achamos tudo isso natural. Desde que, é claro, nosso patrimônio, nosso carro e nossa casa esteja em segurança, protegida destes “suspeitos”, e que eles estejam “sob controle”. Então, porque a morte de centenas de pessoas em favor da defesa do patrimônio material, no caso do mercado Ycuá Bolaños, deve ser entendido como um fenômeno isolado de uma lógica maior? Será que os proprietários do mercado podem ser considerados individualmente culpados por terem avaliado que os pobres da sociedade paraguaia eram potenciais “bandidos”, pelo simples fato de possuírem uma condição social humilde? Não teríamos também nossa parcela de culpa nisso tudo, por gerar, alimentar e naturalizar a sociedade de consumo que sobrepõe bens materiais e relação ao ser humano, considera pobres como possíveis ladrões e nos ensina que ostentar, possuir e consumir é sinônimo de prestígio, respeito e felicidade? Temos sim, nossa parcela de culpa. Que tragédias como a do Ycuá Bolaños não sejam em vão e coloque dúvidas sobre nossas certezas, como a crença inefável na civilização criada pelo capitalismo.

Charles Darwin se envergonharia se vivesse hoje e, ao contrário do que escrevera no século XIX, constatasse que hoje nossa “evolução” nos colocou abaixo de seres “irracionais” como os animais; estes, embora também matem e morram entre si, o fazem por disputa de alimentos, água, território e fêmeas; numa palavra, pela sobrevivência da própria espécie. Nós, diferentemente, matamos, morremos e deixamos que se mate por causa de dinheiro, carros, tênis, roupas, jóias caras e milhares de outras quinquilharias criadas pela moderna sociedade industrial e de consumo da qual fazemos parte.

(Emilio Gonzalez - Historiador - é morador de Foz do Iguaçu e Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR
Campus de Campo Mourão / PR).

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