quinta-feira, 21 de maio de 2009

CRISE (Por: Ferrez)

Ele desce na Califórnia, passa pelo grande vale do Silício, que antes movia tudo a sua volta. Lembra dos números, faz uma rápida contabilidade em sua tumultuada mente, pensa em todos os lucros que obteve e não sabe por que está daquela maneira. Alguém oferece sopa e ele recusa, afinal ainda lhe resta algo. Orgulho. Mas não pode negar que a barriga dói, que a mente dói, que tudo a sua volta agora é dor. Será assim que o terceiro mundo se sente? Será isso que eles passam? Será por isso que esse povinho reclama tanto? Não! Não daquela maneira, não com ele, não com eles. O velho continua a caminhar, recolhe agora latas e garrafas, faz favor pra alguém que lhe dá algo para comer. Vare calçadas, limpa banheiros, faz qualquer coisa por uns trocados, antes destinados aos latinos, brasileiros, bolivianos. O príncipe do capital agora é uma figura amarga, com vestes rasgadas, sem qualificação necessária para ganhar o pão de cada dia. Ninguém diria que ele criou tanta desavença, que estimulou tantas mortes, que usou símbolos infantis como os desenhos animados e filmes, para promover a guerra e o genocídio. Quem em sã consciência diria que aquele homem, maltrapilho, que dorme hoje protegido por latas de lixo, chegou a remover presidentes, incentivar golpes, promover ditaduras? A construção da sua casa, apelidada pelos filhos de estado norte-americano, está manchada de sangue de 1 milhão de indígenas de diferentes tribos, todas consideradas 'inferiores', que foram expulsos de suas terras e simplesmente exterminados.

A história de sua família é muito bem escrita, por eles, os vencedores de tantas batalhas: seus avós adquiriram e anexaram o Alasca, invadiram as Ilhas Midway, ocuparam Pearl Harbor, anexaram o Havaí. Seus pais ocuparam militarmente Cuba, Porto Rico e Guam, invadiram as Filipinas (onde morreram 100 mil filipinos), ocuparam o arquipélago de Samoa e anexaram as Ilhas Virgens, fomentaram o separatismo na província do Panamá, interviram na República Dominicana. Mas, ele diz que não chegou a tanto, só entrou na Guatemala para apoiar governos fantoches, e chegou a financiar guerrilheiros anti-sandinistas após a morte de mais de 30 mil nicaragüenses. Numa manhã quente demais, acordou de mal humor e decidiu invadiu El Salvador, promovendo alguns dos mais violentos massacres da América Latina, não poupando velhos nem crianças. Por causa de um carro, discutiu com sua esposa e com tanto ódio, foi à Venezuela e financiou a ditadura. Não se entendia mais com ela e no outro dia resolveu apoiar a ascensão de uma ditadura no Suriname e na mesma tacada invadir a ilha de Granada. Voltou às pazes com sua amada e não por sua escolha, mas influenciado pelas ondas do mercado, realizou outra intervenção militar no México e agora por questões políticas tem apoiado um. violento governo formado por militares que já deixou mais de 100 mil mortos.

Sua mulher inglesa não compreendia que ele não pode passear com sua filha no parque temático, porque estava financiando um grupo guerrilheiro em Angola, mergulhando o país numa violenta guerra civil que prossegue até hoje e transformando Angola num dos países com o maior número de minas terrestres ainda ativas no mundo. Sua mulher cansou de reclamar e talvez por isso ele esteja sozinho, pois em vez de ir ao almoço de família que ela realizou, ele preferiu bombardear a Líbia, invadir a Somália e resolveu ficar de vez na Arábia Saudita e Kuwait. Numa última tentativa foi viajar com a família, todos então foram tirar férias em Moçambique, e ele aproveitou para financiar um grupo guerrilheiro que foi treinado e armado para lutar contra grupos socialistas em Guiné-Bissau, Marrocos, Argélia, Ruanda, Etiópia, Sudão, Somália. Quem olha para aquele homem hoje, com sua grande barba branca, vestido com restos de um tecido que já foi azul, branco e vermelho, não imagina que ele foi ao Chile para matar Allende, que foi ele em pessoa que trouxe Pinochet, que chegou na Argentina e apoiou a ditadura que resultou em mais de 35 mil mortos. Quem nota aquele velhinho jogado na viela, com a mão estendida, pedindo alguns trocados, não diria que ele foi até o Brasil e organizou um golpe militar em 1964, também com participação e supervisão da CIA, que chegou a enviar um porta-aviões, um porta-helicópteros, 6 destróieres, esquadrilhas de caças, petroleiros de 100 toneladas de armas leves para apoiar o golpe e que caso a população brasileira resistisse ao golpe, as suas tropas estadunidenses desembarcariam no país, coisa que não aconteceu, não foi necessário, ninguém reagiria ali mesmo, nem ontem, nem hoje.

Uma senhora passa, ela tem traços indígenas, ou africanos, ele não sabe ao certo, afinal nunca ligou para a cultura dos outros, ela carrega um filho quase morto no colo, olha para aquele senhor, com sua imensa cartola, ela retira uma coisa de sua pequena bolsa, entrega para ele, é um papel com uma frase, então ele abre rapidamente, mas não está escrito em inglês, e por isso não consegue ler, vira-se para ela e pergunta o que está escrito.

Ela diz:

Bem-vindo ao meu mundo, Tio Sam.

(Ferréz é escritor e hoje vive com esposa e uma filha num país chamado periferia).

Fonte: Revista Caros Amigos n° 145 de Abril de 2009.

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