sexta-feira, 12 de setembro de 2008

LETRAS, TRETAS E SHOPPING CENTER (Por Lizal)




No ano de 1987 eu completava 08 anos de idade. Piá correria, saía para cuidar de carro, vender picolé, salgado, catar recicláveis e buscar frutas e verduras no fim da feira. Durante a semana eu acordava cedinho pra acordar o sol. Saía de manhãzinha e voltava meio dia pra ir à escola na parte da tarde. Os cadernos eram doados. A primeira frase que eu aprendi a ler inteira foi: “FUNDEPAR, venda proibida”, que era estampada no caderninho de 100 folhas que o colégio doava para as famílias carentes. Na falta de mochila para levar os materiais escolares nós improvisávamos. A mochila era um pacote de arroz ou açúcar de cinco quilos. Amarrando nele dois pedaços de tecido velho podia-mos carregá-lo como se fosse uma mochila de verdade. Eu nunca tinha usado uma roupa nova, minha mãe só comprava no brechó. Eu usava várias vezes a mesma roupa parecendo personagem de gibi. O chinelo era consertado com pregos várias vezes, pois o dinheiro não dava para comprar chinelos novos. O lanche do colégio ajudava bastante, pois em casa a comida nunca dava pro mês inteiro.

Já no primeiro ano letivo aprendemos o alfabeto. A professora ensinava pra gente as vogais a-e-i-o-u e as consoantes. Depois a formação das palavras: b+a = ba, t+a = ta, ta+tu = tatu e assim por diante. Mais pra frente ensinou as primeiras regras de português: antes de P e B não podemos usar a letra N, o correto é a letra M. “Porque professora?”, sempre alguém perguntava. Então ela inventava uma história: “Era uma vez o alfabeto inteiro saiu para uma festa. Todas as vogais e as consoantes eram amigas. De mãos dadas dançavam e se divertiam. A letra N era muito desastrada. No ápice da festa ela tropeçou e caiu sobre a letra B que caiu sobre a letra P e caíram no chão. A letra M correu para socorrê-las. Ao ver que suas roupas ficaram sujas foram embora da festa e a letra M em solidariedade acompanhou-as. Depois desse dia a P e a B nunca mais falou com a N”. Eu pirei com aquilo tudo, as letras, as vogais, as histórias, as frases. Parava na frente dos comércios para tentar ler o nome do estabelecimento, pegava até papel de bala no chão para tentar ler.

Comecei a trabalhar cuidando de carro em um centro comercial. Além de um hiper-mercado havia no local uma lanchonete, uma feira de frutas e verduras, uma casa de doces, um bazar, e pra minha alegria, uma banca de revistas. Quando eu trabalhava na parte da noite, de vez em quando eu chegava na banca e ficava folheando os gibis. A dona da banca sempre mandava eu sair, pensando que eu queria roubar. No outro dia eu estava lá de novo. Eu lia uma parte da história por dia até terminar todo o gibi; o dinheiro que eu ganhava não dava pra ter o luxo de comprar gibis e revistas, tinha que ajudar a pagar as contas de casa. Desenvolvi rápido a minha leitura e um belo dia vi minha favela na manchete principal do jornal: “Bandidos morrem após confronto com a polícia no Jd. Paraná”. Percebi que quando os “criminosos” eram menores de idade usavam siglas ao invés dos nomes: “os menores A N S e P M D são detidos...”.
Percebi que a guerra das letras continuam.

Com 14 anos consegui emprego na feira. Salário baixo e sem carteira assinada. Comecei a estudar de noite, entrava no trampo as 5:00 hs da madruga. Com meu primeiro salário comprei minha primeira roupa nova em uma loja e comecei a sair curtir nas discotecas nos fins de semana. Conheci a noite, a balada, a bebida alcoólica, a música, as minas e me afastei dos livros. Continuei na escola, mas colava pra passar de ano. Me juntei com uma galerona grande, de uns 40 malucos e a pira era cair no soco com os malucos de outros bairros. Naquela época poucas pessoas tinham armas de fogo e as tretas se resolviam na porrada.
Hoje em dia vários malucos andam armados. As broncas se resolvem na bala. São poucos os manos que tem disposição pra trabalhar catando recicláveis, vendendo picolés e salgados, ou descarregando caminhões no Ceasa. Muitos moleques sentem vergonha de usar roupas compradas no brechó e o lazer de muitos é ir ao Shopping Center. “Você não precisa mais viajar para ir ao Shopping” dizia uma frase escrita em um outdoor.
Hoje a minha mentalidade é outra, deixei as baladas, as tretas, a bebida, e voltei pros livros. Não vou ao Shopping Center, fico em casa lendo, escrevendo e cantando. Hoje prego a ideologia da Paz e do Amor. Nas minhas letras musicais achei uma forma de acabar com a treta da letra N com a P e a B. Eu escrevo: “anbição”, “canpo”, “conpra”, “conbate” etc...

Na hora que eu canto ninguém percebe.

(Lizal é ativista do movimento hip-hop em Foz do Iguaçu e acredita que em breve o povo vai engolir seu orgulho e parar de tretar entre si. É mais um visionário que acredita nas flores vencendo o canhão).

Nenhum comentário: