segunda-feira, 15 de junho de 2009

SER COMO ELES_ Eduardo Galeano

PODEMOS SER COMO ELES?

Promessa dos políticos, razão dos tecnocratas, fantasia dos desamparados:
O Terceiro Mundo vai virar Primeiro Mundo, será rico, culto e feliz, tudo isso só com boa conduta, fazendo o que mandam lhe fazer sem protestar. Um destino de prosperidade recompensará a obediência dos mortos de fome, no ultimo capítulo da novela da história. Podemos ser como eles, anuncia um gigantesco letreiro luminoso, aceso no caminho do desenvolvimento dos subdesenvolvidos e a modernização dos atrasados. Mas o que não pode ser, não pode ser mesmo e além disso é impossível: se os países pobres chegassem ao nível de produção e fartura dos países ricos, o planeta morreria. Já está nosso pobre planeta em estado de coma, gravemente intoxicado pela civilização industrial e exprimido até a penúltima gota pela sociedade de consumo. O mundo, convertido em mercado e mercadoria, a natureza, humilhada, posta ao serviço da acumulação de capital, envenena-se a terra, a água e o ar para que o dinheiro produza mais dinheiro sem que caia a taxa de lucros. A chuva ácida dos gases industriais assassina os bosques e as lagoas do Norte do mundo, os detritos tóxicos envenenam rios e mares, enquanto ao Sul a agroindústria da exportação avança arrasando árvores e gente, uma piada, EUA o único país que não assina o Protocolo de Kyoto para redução das substâncias do efeito invernadero e proteção da camada de ozônio. Ao Norte e ao Sul, a Leste e Oeste, o homem serra, com delirante entusiasmo, o galho onde está sentado.

Na fogueira continuada da Amazônia arde meia Bélgica por ano, queimada pela civilização da cobiça, em toda América Latina a terra está ficando deserta e seca. No sul do continente americano morrem 22 hectares de terra por minuto, na grande maioria sacrificadas pelas empresas que produzem carne e madeira, em grande escala, para o consumo dos cidadãos do mundo globalizado. As vacas de Costa Rica se convertem, nos Estados Unidos, em hambúrgueres do MacDonald's, há 50 anos as árvores cobriam três quartas partes do território de Costa Rica: já são muito poucos as árvores que sobraram, e ao ritmo atual de desmatamento, o pequeno país vai virar um sertão. Costa Rica exporta carne aos Estados Unidos, e dos Estados Unidos importa agrotóxicos que os norte-americanos proíbem aplicar sobre seu próprio solo. A bolsa de valores de New York dirige a grande orquestra da globalização. Os países do hemisfério Norte dilapidam os recursos de todos, crime e delírio da sociedade da abundância: uma minoria de ricos devoram um terço de toda a energia, e um terço de todos os recursos naturais do mundo inteiro.

Segundo as estatísticas revelam um só norte-americano consome como cinqüenta haitianos; que aconteceria se os cinqüenta haitianos consumissem subitamente como cinqüenta norte-americanos? Que aconteceria se toda a imensa população do Sul pudesse devorar o mundo com a impune voracidade do Norte? Que aconteceria se multiplicasse nessa louca medida os artigos suntuosos, as “limusines”, os computadores, as casas com piscinas, o ar condicionado central, usinas termo elétricas e nucleares? Que aconteceria com o clima, que já esta perto do colapso pelo aquecimento da atmosfera? Que aconteceria com a terra, com a pouca terra que a erosão esta nos deixando? E com a água, que a metade do mundo bebe contaminada com nitratos, pesticidas e detritos industriais de chumbo e mercúrio entre outras substâncias?
Já está acontecendo, teríamos que nos mudar de planeta, este está gasto e já não suporta mais.

QUEREMOS SER COMO ELES?

Num formigueiro bem organizado, as formigas rainhas são poucas e as formigas obreiras muitas, as rainhas nascem com asas e podem fazer amor, as obreiras que não voam nem amam, trabalham para as rainhas; tem policias que vigiam as obreiras e as rainhas. Nossa época está marcada pela confusão dos meios e os fins; não se trabalha para viver, vive-se para trabalhar; uns trabalham muito porque necessitam mais do que consomem; outros trabalham cada dia mais para seguir consumindo mais do que necessitam. Somos peças de um sistema de engrenagens, estamos obrigados a dançar, quem se nega fica fora, excluído do sistema bancário, da saúde, da educação e da previdência.

A CIDADE COMO CÂMARA DE GÁS

Nossos campos se esvaziam, as cidades como São Paulo, se convertem em infernos grandes como países, cresce a um ritmo de meio milhão de pessoas e trinta quilômetros quadrados por ano, já tem cinco vezes mais habitantes que a Noruega. O ar limpo e o silêncio são artigos tão raros e tão caros que já nem os ricos podem comprá-los. Existe uma nuvem de sujeira no ar das grandes cidades, pássaros que tossem em vez de cantar, árvores que se negam a crescer, só falta um cartaz que diga “Recomenda-se não respirar”. As crianças nascem com um coquetel no sangue, MONÓXIDO DE CARBONO, OXIDO NITROSO, OZÔNIO FOTOQUÍMICO, DIÓXIDO DE ENXOFRE, a contaminação sonora está instalada fora e dentro do lar, para que não esqueçam que temos que viver com 'stress”. O direito de contaminar e mais um incentivo fundamental para trazer “Invenções Estrangeiras”, a liberdade do dinheiro que deprecia a liberdade dos demais. São mais importantes o direito de empresa e de propriedade que os direitos humanos. A anarquia dos veículos determina que os paulistas dediquem até quatro horas por dia para ir e voltar do trabalho, quatro horas sentados no carro respirando sujeira, e coitados dos pedestres que ousarem invadir o território do maior predador da metrópole.

A CIDADE COMO PRISÃO

Caminhar pelas ruas das cidades virou uma atividade de alto risco, ficar em casa também, sair, só pela necessidade de trabalhar, vivemos presos no medo, condenados ao pânico do próximo assalto, rezando para evitar formar parte das estatísticas da violência. Quem tem algo por pouco que seja, vive em estado de ameaça, em posição de defesa. Prédios residenciais que parecem castelos feudais da era eletrônica; só falta a fossa com tubarões, grades eletrificadas, portões levadiços, câmeras e alarmes, torres e guardas armados, e ainda assim são alvo dos criminosos. Neste país onde se condena a pena de morte, existe a pena de morte pelo direito a propriedade, ou o direito ao seqüestro ou assalto. A sociedade de consumo, que consome gente, obriga a gente a consumir, enquanto a televisão dita cursos de violência a universitários e analfabetos.

A televisão exibe o obsceno delírio da festa do consumo, a opulência de políticos e famosos, e nos ensina também a defender nosso território com balas. Crianças, adolescentes e maiores pobres, praticam a iniciativa privada do delito, o único campo onde podem-se desenvolver, os direitos humanos se reduzem a roubar ou morrer, como feras saem nas ruas de caçada, em qualquer esquina está a presa, depois fogem. Sua vida acaba cedo, consumida pelo álcool, cheiro de cola, maconha e outras drogas, bom para enganar a fome, o frio, a solidão, a vida acaba com uma bala ante as câmeras dos jornais, o verdadeiro “Reality Show”. A civilização do capitalismo selvagem, o direito de propriedade é mais importante que o direito a vida, a gente vale menos que as coisas. Temos que acreditar na premissa “o mercado livre é a clave da riqueza”, eficiente e quem mais ganha em menos tempo, cuidado com o vizinho que é um concorrente. O duvidoso casamento entre a oferta e a demanda, num mercado livre que serve ao despotismo dos poderosos, castiga aos pobres e gera uma economia de especulação. Tecnocracia que enxerga números e não pessoas, mas só enxerga os números que a ela servem. Ao fim e ao cabo, a dignidade humana depende do cálculo de custos e benefícios, o sacrifício da população não é mais que o “custo social do progresso”.

(Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio.

Fonte: Livro Ser Como Eles.)

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